Um tantinho de nós

"Quando, despertos deste sono, a vida,
Soubermos o que somos, e o que foi
Essa queda até Corpo, essa descida
Até à noite que nos a alma obstrui

Conheceremos pois toda a escondida
Verdade do que é tudo que há ou flui?
Não: nem na Alma livre é conhecida...
Nem Deus, que nos criou, em Si a inclui."

Mensagem, Fernando Pessoa.


A gente nasce e antes mesmo disso, parte, deixando um tantinho de nós com os que ficam "na sala ao lado". Rosamunde Pilcher disse que a morte é um acidente desprezível, pois não deixamos de existir, apenas passamos para a sala ao lado. Nascer também é uma morte e também não significa que deixamos de existir no mundo espiritual, apenas passamos para a sala ao lado, deixando um tantinho de saudade para quem ainda vai ficar por mais algum tempo.


Então, como eu ia dizendo: a gente nasce já deixando um tantinho de saudade, mas chega alargando sorrisos, abrindo corações, reafirmando a vida, mostrando para quem está aqui que o sol brilha, o céu é azul e as flores são lindas. O dia, quando alguém nasce pertinho da gente, fica mais bonito, a vida ganha outro sentido. E cada dia dessa vida nova e dessa nova vida vai sendo preenchido com um tantinho de nós, sem que percebamos. Um sorriso que fica aqui, uma brincadeira ali, uma aventura lá, uma passagem única acolá. Vamos preenchendo a vida uns dos outros com lembranças que são inesquecíveis. Só percebemos isso, no entanto, quando a gente faz a grande viagem. Quando a gente deixa de existir em um lugar para existir em outro.

Nessas horas, normalmente, a gente pensa em quem fica. Nunca em quem parte, pois quem parte, parte para perto de Deus, para perto de pessoas queridas, para cumprir uma missão, ou seja, parte com um objetivo, parte tendo um futuro pela frente: parte-se sempre para uma nova vida.

Mas que nova vida é essa? Como foi essa partida? Como VAI quem parte? Quantas vezes nos fazemos esta pergunta? Não é sempre "como fica quem fica?". Vamos pensar um pouco em quem partiu. E vamos pensar que esta pessoa que partiu somos nós. Eu e você.

Como eu queria partir e como estou partindo? Quando? Por quê? Para onde? Por decisão de quem? E, principalmente, que tantinho de mim estou deixando para quem fica? Deixei AMOR suficiente? Exemplos? Valores? Princípios? Segurança? Fé?

E se a gente partir sem deixar nada disso? Deixar só saudade e um gosto amargo na boca? E se a gente partir porque a vida ficou insuportável? Será que todos aqueles tantinhos de nós que fomos deixando pelo caminho vão perder a sua validade? Será que não haverá uma sala ao lado para nós?

Confesso, eu estou a pensar nos que partiram por vontade própria. Nos que foram assaltados por uma constante dor selvagem e viram como única saída, estancar a dor de uma existência sem sentido.

Em 2012, a Organização Mundial de Saúde, publicou em seu relatório anual que um milhão de pessoas se suicidam por ano no mundo todo. Este número é maior do que o número de mortes em guerras somado ao número de homicídios. As tentativas  de suicídio chegam a 20 milhões por ano!

Ainda assim, o assunto continua a ser tabu em todos os lugares.  A cada 40 segundos uma pessoa se suicida. Essa pessoa deixou um tantinho de si na vida de muitas outras pessoas e passou a ser um tantinho de nós. Provavelmente, em algum momento ela pediu socorro... e se um tantinho de nós a tivesse ouvido, talvez ela ainda estivesse aqui.

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