A cruz de Oz
Trouxeram-no, novamente. Todos os dias, várias vezes, sempre
na mesma hora, ele chega. Vem trazido por mãos habilidosas e corações frios,
gélidos.
Enclausurado em copinhos de plástico, semelhantes àqueles
nos quais tomamos chá na sala de espera do preclaro doutor. Aquele homem alto, de ombros curvados, cabelo
ralo penteado todo para um só lado, tentando esconder o óbvio, óculos grossos e
pesados pendendo em um nariz adunco, pele macilenta e marcada por vincos
profundos de indiferença. Um jaleco todo branco, tão branco, tão liso que se
pode dizer que por trás dele há uma Amélia a quarar e engomar a toga do doutor
em Medicina. Uma pobre mulher, escondida atrás de um homem corpulento, vivendo
a vida que ele lhe permite.
Ele vem, as vezes solitário, as vezes acompanhado de outros
como ele. Mas este, este é branco, branquinho como o algodão doce vendido no
parque de diversões por aquele moço sempre simples e sorridente. Talvez a simplicidade
e o sorriso aumentem as vendas. E as crianças gritam: “Papai, papai, me dá um pedacinho de
céu doce?” O pai sorri,
satisfeito com a imaginação infantil, tira uns trocados do bolso e compra um
pedacinho de céu doce para a criança.
É circular, milimetricamente. Poderíamos brincar com eles,
se houvessem muitos, de futebol de botão, ou de passa Maria, ou apenas rodá-los
como moedinhas e ver seu giro, giro, giro, girando até cair. Mas não nos
permitiriam.
Ele vem marcado. Se pudessem, e a soberba não esbarrasse na
impossibilidade técnica, viria marcado com o honroso símbolo da ciência mais
respeitada em toda a sociedade:
Medicina. Que tal uma serpente enrroscadas em uma vara? Penso, e talvez você também, que seria
ridículo, pois o símbolo em si o é.
Mas vem simplesmente marcado com uma cruz. Devo ser honesta,
não é uma cruz. São dois traços perpendiculares que se cruzam exatamente no
meio. Uma cruz seria também composta por dois traços perpendiculares, mas que
não se interceptariam exatamente no meio. Contudo, esqueçamos isso um pouco e
imaginemos que é uma cruz. Talvez, Santo Agostinho tivesse tido esta ideia e
com ela tivesse criado uma segunda hóstia: a hóstia profana dos médicos. Isso me pareceu um insulto ao
corpo de Cristo. Mas o que é esta Medicina insensível as dores do espírito senão
um insulto ao Cristo?
O Papa
Bento XVI, em uma de suas epístolas dizia, com muita propriedade e
lucidez, que o homem sofre. Sofre as dores do corpo, sofre com as doenças e que
a Medicina muito tem feito para aliviar essas dores. No entanto, o grande mal
que assola a humanidade é espiritual. É dor espiritual, inalcançável aos
preclaros doutores. Dor só compreendida por Deus, dor só sanada pela fé e
devoção.
De forma alguma me pareceu um discurso para arrebanhar
fiéis. Ele, o Papa aposentado, está absolutamente certo e jogou-nos na cara a
verdade mais clara que, no entanto, cegos, não queremos ver.
Talvez, então, seja justo que eles, branquinhos, venham
marcados por uma cruz, assim, assim, meio mal esquadrinhada, lembrando-nos de
ter fé.
A insensível e gélida entregadora chega, pega o invólucro do
meu visitante habitual, entrega-me e
espera, atentamente, que eu o engula. Não há sequer a possibilidade de um
ritual particular. É pegar, engolir, devolver o invólucro.
Não há mais também aquela liberdade de abrir o papel
alumínio da cartela e descobri-lo lá dentro, empurrá-lo pelo lado inverso,
fazendo com que salte em minha mão. Como a hóstia: em minha mão e jamais em um copinho
plástico que foi reciclado dezenas de vezes e ainda carrega em si a sua
imundície.
Era mais respeitável e honroso o tempo em que eu mesma
poderia descobrir minha hóstia medicinal. Mas tanto faz. O que importa é que eu
a engula e, principalmente, que no meio da minha incomensurável dor espiritual,
revolta e tristeza, sobre algum espaço para a fé.
A gélida entregadora se vai, satisfeita de me envenenar. Eu
fico com o gosto amargo do veneno na boca, desejosa de estar perto de Cristo,
acolhida em seus braços. Mas ainda vivo no mundo de Oz, em que homens que se
pensam salvadores de almas, nos entregam circulares medidas de veneno que nada
mais farão do que trazer a cruz incrustada em sua superfície, lembrando-nos que
ainda nos resta a chance de sermos chamados para perto de Deus.
Por enquanto, apenas somos retalhos de bulas.
Nossa... Forte, vibrante, emocionante. Você é uma maravilhosa escritora!!! Parabéns!
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