Ela vem chegando

Todos os dias aquela hora era possível ouvir os vizinhos arrastando os móveis para a limpeza diária, as crianças correndo e pulando no andar de cima, o porteiro lavando as calçadas e juntando as folhas no gramado, o abrir e fechar da porta de vidro do prédio em que Marcela morava. Poucos carros trafegavam na rua pacata: mães, levando os filhos para a escolas, pais indo ao trabalho, jovens correndo para a academia, ironicamente, de carro, no fluxo acelerado da vida. Apenas Marcela estava só e quieta naquele meio de semana em que a vida corria agitada para todos.

As cortinas do apartamento ainda estavam cerradas e as janelas fechadas. O ar da manhã era o mesmo ar pesado da madrugada - cheio de angústia. O marfim alegre que coloria as paredes do jovem lar, naquela manhã, lembrava o amarelo mórbido dos crisântemos em seu murchar. Marcela tinha o rosto macilento e com profundas olheiras. Podia-se ver as marcas das muitas lágrimas que correram em seu rosto durante toda a madrugada. Quanta dor se podia sentir em suas mãos trêmulas e agarradas desesperadas no travesseiro junto ao corpo. Abraçava o quê? Uma última razão para continuar?


A razão naquela manhã não dialogava em favor da vida. Tudo se dispunha a provar a razão do fim. Tantas haviam sido as batalhas, tantas as vitórias, sim, vitórias. Mas tão dolorosas as derrotas! E o erro, sempre o mesmo, no mesmo ponto, com a mesma gravidade. Não havia solução para tamanha falta de discernimento, para tão elevada ingenuidade e leviandade para consigo própria. Era hora de assumir sua inabilidade para viver. Sua infertilidade. Sua inutilidade.


Os últimos golpes vieram em punhados. Muitos. Tantos! O corpo, aos poucos, deixava de ser. Marcela abandonava-se, convicta. Não havia mais a face macilenta, as olheiras profundas, o caminho das lágrimas, as mãos trêmulas. Não havia mais barulho de vizinhos, crianças correndo, o porteiro, os carros, a vida lá fora. A vida lá dentro. Nada mais. Nem um erro a mais. Apenas o repouso, os olhos repousados nas persianas que se debatiam com a brisa que entrava pela fresta da janela.


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