Inverno




Stella estava morta e nada poderia mudar o curso da história que culminara naquele momento. Thomas optara por não acompanhar a cerimônia fúnebre de sua esposa. Nada mais inútil e sem sentido para ele do que chorar diante de um corpo que já não significava nada. A alma de Stella partira e com ela iam todas as lembranças de uma vida inteira em comum. Quarenta anos! Thomas sempre soubera que um dia se separariam. A ideia da separação, no entanto, não o incomodava. Sabia que ele e Stella se reencontrariam no mundo espiritual e, provavelmente, ainda em outras vidas. Pelo menos, era assim que Thomas pensava até sentir no dia a dia a ausência da esposa.
Pela manhã, Thomas não ouviu os passos de Stella, chegando-se à cozinha quando o cheiro do café que ele preparava invadia o pequeno apartamento. Havia apenas silêncio e uma xícara vazia ao lado da sua. Thomas ouviu o silêncio e suspirou profundamente, tentando recobrar a confiança que tinha em suas convicções espiritualistas. Tentou a todo custo fazer-se forte. Cobrou de si mesmo uma postura ereta, mas seus ombros insistiam em curvar-se sobre si, transformando aquele homem imenso e um ser pequenino, triste e com medo. Queria gritar por Stella, queria chorar, queria zangar-se! Não tinha forças.  Apoiou-se de costas na bancada, recusando-se a ver a xícara vazia ao lado da sua. Porém, tudo no pequeno apartamento, naquele momento, falava de Stella. Ele nunca percebera o quanto seu corpo, sua casa e sua vida estavam preenchidos por ela. Vivera os últimos quarenta anos, amando-a sinceramente. Entretanto, sentia-se livre para ir a qualquer momento sem sentir o peso da separação. Thomas percebera, com a partida inevitável da esposa, que em toda a sua vida acreditara em uma ilusão. O café esfriara.
Determinado a combater aquele sentimento de apego, Thomas reaqueceu o café, tomou-o em grandes goles e sentiu o líquido quente que descia pela sua garganta reaquecê-lo também. Mais disposto, retomou suas tarefas diárias convicto de que seguir a rotina era o melhor a fazer. Este havia sido o plano de toda a sua existência: continuar caminhando, ainda que lentamente, fossem quais fossem os acontecimentos da vida. Enquanto lavava a louça do café, recordava-se da primeira situação em que fora necessário assumir esta postura. Fora assim quando, ainda jovem, perdera seu pai em seus braços e assumira seu lugar, responsabilizando-se pela família numerosa. Três irmãs mais novas, um irmão ainda muito pequeno e a mãe. Aos vinte anos, Thomas ganhara a estatura do homem da casa. Provedor da subsistência, do afeto, da confiança e da segurança necessárias ao sustento da família. Fora esta estatura que Stella reconhecera em Thomas logo que se conheceram, apenas dois anos mais tarde.
Alguns anos mais velha, o suficiente para não desejar um compromisso com um homem ainda tão jovem, Stella, com pouca relutância, permitiu que Thomas se aproximasse e fosse ganhando cada vez mais espaço em sua vida. Thomas destacava-se entre muitos outros. Trazia o olhar firme, a postura altiva, a voz impositiva, porém macia, de um homem na casa dos trinta anos, quando mal acabara de completar os vinte e dois. Seus gestos eram calmos, o caminhar era seguro e tudo o que fazia parecia ser minuciosamente planejado. Após várias noites no bar em que tocava com alguns amigos, única distração própria a idade que Thomas se permitia após a morte do pai, observara Stella. No dia em que decidira que ela lhe convinha, sem hesitar, aproximou-se da mesa em que ela estava com algumas amigas e, olhando-a como se fosse a única pessoa em todo o bar, ele estendeu sua mão, sem dizer palavra, sem qualquer sorriso, levando consigo apenas um olhar que prometia tudo. A aproximação daquele jovem confiante, a conversa na mesa cessou e todas as atenções se voltaram para Stella. Ela estenderia, também, sua mão àquele desconhecido?  Aquele seria mais um episódio comum em que uma moça rejeita sem qualquer dúvida o rapaz que a corteja?
Stella estendeu sua mão, apoiando-a firmemente na mão de Thomas. Levantou-se e, conduzida por ele, chegaram à pista de dança. A madrugada já era alta e a trilha sonora do bar convidava os casais a se aproximarem. Thomas e Stella dançavam de maneira absolutamente envolvente. Os braços estendidos ao longo do corpo, segurando-se pelas mãos, o rosto de Stella apoiado suavemente no rosto de Thomas, dançavam em um ritmo tão lento que mal era necessário mexer os pés. Aos poucos, as mãos de Thomas acariciaram os braços de Stella e envolveram-na em um abraço terno e seguro. As mãos da dançarina pousadas, como que adormecidas sobre os ombros do parceiro. O hálito compartilhado. Olhos que se liam. Corpos que dialogavam em toques sutis. Nenhuma palavra. Quando a música cessou, continuaram ainda por algum tempo imersos em seu próprio tempo. Finalmente, ao esbarrão de alguém, Stella e Thomas despertaram, despediram-se silenciosamente e se separaram.
Na noite seguinte, estavam novamente juntos. A delicadeza do primeiro encontro dera lugar à paixão. Logo, Thomas e Stella eram vistos sempre juntos. Misturavam-se, completavam-se, fundiam-se e separavam-se e fundiam-se novamente com tamanha naturalidade que não era possível dizer que ali existiam duas pessoas. Era mais crível a ideia de que um eu coabitava dois corpos. Apesar disso, não exalavam amor. E com os anos, nem paixão. O que os unia parecia não ter nome. Qualquer qualificação pareceria incerta e inexata. Apenas, as almas de Thomas e Stella acomodavam-se uma a outra. Talvez, um tipo de amor incomum e raro. Contudo, suficientemente forte para uni-los e conduzi-los por toda uma vida comum.

Comentários

Postagens mais visitadas