A Iemanjá e o Misantropo

; iam, então, se encontrar.

Ela chegou ao endereço uns 20 minutos depois do combinado. Contudo, sabia que ele não estava ansioso por ela. Tratava-se de outro tipo de homem. Nada de caixas de bombons e flores, nem nas mãos, nem nos olhos, nem na boca. Sem poeminhas, sem frescurinhas, sem coisinhas românticas e que apenas nos fazem crer que o outro é “perfeitinho” nos primeiros tempos da relação (porque depois vem a bagaça...).

Estaria lá cru, wisky e cigarro, sentado ao balcão, de costas para tudo. Se ela viesse, bem. Se não viesse, que mal tem?

Mas ela chegou e não achou o bar. Então, ligou: “Estou aqui, mas não tenho nem ideia de onde fica este bar.” Primeiro sinal vermelho: ele a-ten-deu! Ihhhh, isso não é bom hein. Estaria o Misantropo, abrindo uma exceção?

Falaram-se pelo celular: ele indicando o caminho e ela seguindo. O velho padrão. Na verdade, não é o velho padrão... Se fosse, ele teria largado o balcão e teria ido buscá-la na porta, mas isso seria insuportavelmente patético e decepcionante para ambos.

Ela chegou. Olharam-se, cumprimentaram-se. Era a primeira vez que se viam. Ele disse: “dá cá um abraço.” Ela assentiu e pensou: “fosse um daqueles homens românticos estaria se tremendo todo e pensando quando tocaria de raspão no meu braço.”

Ao balcão, ela preferiu a mesa. E neste ponto, o Misantropo foi de uma consideração infindável aceitando libertar-se do balcão, para aprisionar-se à mesa. Entretanto, quando ela se sentou – despojadamente, assim, meio de lado, lindas pernas cruzadas, um braço apoiado na cadeira, a cabeça jogada um pouco para trás, quase tocando a parede cheia de pôsteres de rock, um olhar indagativo e um sorriso provocativo – ele se acalmou e sorriu.

Iemanjá, em branco, renda e um escarpim rosa, não era o tipinho de sempre. “Que alívio!” Ele pensou. “Talvez seja divertido”. Em um pub, ela apareceu de branco, banhada em perfume de rosas do Marrocos, brilho nos lábios, segredos nos olhos, desejos na cintura. Entrou, sem ligar para os olhares dos outsiders sombrios, perdidos em suas frustrações servidas à mesa em copos esteticamente indiferentes.

Ele não a olhou entrar. Apenas a-com-pa-nhou a chegada daquela “presença”.

Estavam os dois um frente ao outro, examinando-se e saboreando as primeiras impressões, silenciosamente. Ela: vodka e coca (precisava estar, minimamente, sóbria). Ele: wisky (não tinha a menor intenção de permanecer consciente). Iniciaram a anamnese, passando em pauta ponto a ponto questões que surgiam e iam despretensiosamente. Não registravam muito os fatos que mencionavam. O fato é que se testavam, se descobriam, se examinavam, tateando os limites um do outro. “Existirmos, a que será que se destina”.

Não se aprofundaram em nenhum assunto. Não tentaram se delimitar, nem apreender totalmente um ao outro. Deixaram-se ficar ali, como animais selvagens em uma arena particular, sem muros, inferindo sobre os instintos um do outro.

Ele era um Misantropo, sem dúvida. Talvez, com algum arrependimento: quando voltasse sozinho para casa, ébrio, e acordasse no alvorecer com aquela ressaca chata, largado em uma poltrona em um canto obscuro da sala. Talvez pensasse que nada mais lhe faltava. Que a si, se bastava.

Ela era uma Yemanjá, aparecida em uma noite, materializada em mulher, provocando, atentando, indagando, sem ultrapassar limites – a não ser, convidada. E seria. E foi. E era. E quando a madrugada chegasse, iria embora, como aparição. Sem pedir nada, sem deixar nada, levando, contudo, um pouco daquele Misantropo e deixando um pouco de si nele: ainda que fosse o amargo da ressaca e a conclusão de que ele se bastava a si mesmo.

Verdades? Mentiras? Hipocrisias? Máscaras? O que escondiam? O que revelavam? Não se pode delimitar nada do encontro destas duas criaturas tão opostas e tão afins. Rir bastava. Alegrar-se bastava. Desejarem-se, bastava, também. Partirem, sozinhos, levando apenas gargalhadas, cheiro de álcool e fumo, e desejo, era ótimo!

Provar, por experiência, o não-acontecimento do amor e da paixão súbitos, não consubstanciar o desejo em sexo, não findar o encontro com uma promessa e não levar para casa a sensação da necessidade de corresponder a alguém: isto era viver libertadoramente.

Partiram, felizes. Felizes para sempre, sem serem príncipes ou princesas, sem contos de fadas, sem madrastas e maldições, sem traumas, sem sexo, sem compromissos.

Rindo de si mesmos e da vida. Felizes por si mesmos e pela vida: Iemanjá e o Misantropo, aparições de uma noite em Brasília.

Comentários

  1. Queria escrever tão bem assim, essa aversão não é só sua, muitos encontram o antônimo de Misantropo na escrita.

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