A Carta - Capítulo V

Levantou aquele corpo da cama e levou-o para banhar-se. Lavou aquele rosto a quem todos reconheciam, menos ela. Cada curva daquele corpo, tantas vezes consumido, foi se perdendo e agora era somente aquilo: o corpo em que habitava. Em nada, naquele corpo, havia algo que revelasse sua alma, ainda intacta. Nem sua voz, nem seu perfume, nem o balançar dos cabelos, nem os gestos, nem os olhos: nada. Tudo era um item de consumo de seu dono - o senhor Santos.

Deixou-se cair na cadeira em frente à penteadeira e delicadamente, retirou, do fundo falso de uma gaveta, um livro empoeirado. Na página marcada com uma fita de cetim, já sem brilho, leu:

Assombro ou paz? Em vão... Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d'espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho — ó dor! — quase vivido...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim — quase a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo... e tudo errou...
— Ai a dor de ser-quase, dor sem fim... —
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...

Momentos de alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...

Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;
E mãos de herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...


Fechou o livro dos poemas de Mário de Sá Carneiro, devolvendo-o ao seu cemitério escondido, suspirou, olhou-se novamente no espelho. Lágrimas secas marcavam sua face. Quem era ela? Maria do Amparo perguntava-se a si mesma. O que se tornara?

D. Alzira bateu à porta, entrou, trazendo-lhe uma simples xícara de café. A velha sabia. Já era manhã alta e Maria do Amparo ainda não descera. Estava reunindo seus cacos, recompondo-se dos deveres matrimoniais, vagando em sua própria alma em busca de qualquer fiapo de identidade que pudesse arrastar pela casa com alguma dignidade.

Há quantos anos D. Alzira presenciara a fragmentação de Maria do Amparo? Há quantos anos solidarizava-se em silêncio? Pegou a escova e principiou a escovar os cabelos de Amparo, trançando-os, enquanto ela sorvia o café e secava as últimas lágrimas. Entre suspiros, Amparo recompunha-se, enquanto um verso ainda ecoava em sua mente: Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim.

Comentários

  1. Oi Dani,
    muito prazer, não nos conhecemos, voltei só para dizer que aleatoriamente encontrei seu blog e gostei muito dos teus escritos.
    Grato pela visita lá no meu humilde espaço.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas