Lendo pessoas e obras

Algumas obras são, como se sabe, abertas. A partir do momento em que chegam às mãos dos leitores podem assumir diferentes significados daqueles planejados pelo seu autor. As vezes, a leitura coincide com a intenção do autor. Outras o autor identifica nas hipóteses do leitor uma possibilidade de leitura que ele não havia imaginado. Ou seja, uma obra aberta permite diversas leituras, independentes das intenções do autor, e que são determinadas pela rede de significados que o leitor consegue estabelecer.

Pessoas também são assim. Obras abertas. Nós lemos as intençõs por elas enviadas. Lemos intenções que presumimos. Lemos o que sequer foi presumido. Lemos o que tem significado para nós e tecemos a nossa rede conforme as ligações particulares que somos capazes de fazer naquele momento.

Mas, independentemente de serem obras ou pessoas, independentemente das intenções dos autores, as hipóteses de leitura sempre encontram uma base que as fundamenta. Reconhecer a legitimidade desta base é capacidade e atitude de poucos. Mais fácil é não admitir a base da hipótese e negar que o conhecimento se dá, cada vez mais, pela nossa capacidade de conectar saberes diversos, mediante forte sinergia com o todo.

Quando uma hipótese é simplesmente descartada, quando sua base não é legitimada estamos negando a conexão que existe entre todas as coisas do universo, negando o próprio significado constituído a partir da experiência e da observação. Negar, negar, negar para quê? Eu sempre me pergunto.

Melhor seria se estivéssemos sempre imbuídos de amorosidade para enxergar e compreender as entrelinhas e as pessoas. Enquanto não formos capazes de entrar na hipótese, vivê-la, experenciá-la, não seremos capazes de refutá-la. Há quem acredite que possa refutar algo que não compreende. Eu diria que trata-se de fugir da realidade, no caso das pessoas, e perder o espírito científico, no caso das obras.

Ler, enfim, é uma competência complexa. Exige conhecimentos, habilidades e atitudes sincronicamente atuantes. O reverso da leitura - a escrita - é, por isso, tão próxima da atividade de ler. Para escrever, é preciso, antes ler: os pensamentos, a realidade, as idéias, as emoções, as situações, enfim, o tema da sua escrita.

Mas há também, a escrita 'inconsciente'. Ela tem outro nome: introspectiva. As vezes escrevemos para um leitor e não nos damos conta de que este leitor somos nós mesmos. Ou escrevemos para um leitor, crente que ele realmente existe, mas ele não está lá. E o que poderia ser um diálogo entre escritor e leitor, se torna um monólogo a dois. Acredito que estes 'textos' não conseguem um grande público. É quando a sinergia se ausenta e nada mais faz sentido. A conexão não pode mais ser feita de maneira alguma.

Aí... lamentamos... lamentamos... lamentamos pela nossa incapacidade, pela nossa insegurança, pela nossa impaciência, pela nossa sede excessiva que nos leva a querer o significado agora, quando ele ainda não está pronto. Nos acovardamos, fechando as portas, fechando os olhos, fechando a boca, fechando o livro.

Voltamos a ser só nós, sem a conexão com o universo de significados possíveis. Somos, por fim, muito pobres perto do que poderíamos ser se reconhecêssemos todas as hipóteses de leitura.

Meu livro se fechou.

Comentários

  1. muito bom! acho isso mesmo: pessoas são obras abertas (ainda que não saibam disso). lembrei daquele livro Farenheit 451, em que cada pessoa era um livro perdido. Abs

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