A Yemanjá e o Misantropo - A Reviravolta

Ele me chegou, assim, polidamente; sentando-se, educadamente; sorrindo, docemente; pronunciando as palavras pausadamente. Tensa, eu estava, lendo "As intermitências da morte", com um sorriso nervoso no rosto, apreciando a ironia de Saramago; detestando aquela espera; desejando ir embora sem nem mesmo forjar qualquer desculpa ou me preocupar em avisá-lo. Algo errado acontecia comigo desde o instante em que eu chegara.

Ao chegar, novamente em um lugar desconhecido, por ele escolhido, um "café cult" (que eu achei "cara de boneca" como ele diz), entrei e procurei a mesa na qual imaginei que ele se sentaria. Sentei-me ao lado dos discos de vinil, onde ele certamente passaria algum tempo garimpando algo inaudível para mim, porém, apreciável por ele. Não compartilhamos o mesmo gosto musical.

Sentei-me e aquele mundo de discos organizadinhos nas estantes, tão lindas, perfeitamente arrumados, coisa que deveria me agradar, a vitrola tão limpa e funcionando tão direitinho, o que também deveria me agradar: tudo me desagradou. Até o Raul Seixas que tocava, e eu adorava, me desagradou. Não suportei 5 minutos naquela mesa que, com certeza, para ele seria a ideal. Levantei-me e fui para o mais distante possível, nos limites do café.

Lá, puxei uma terceira cadeira onde estiquei as pernas, como sempre faço em quase todos os lugares, olhei por algum tempo para a cadeira vazia à minha frente, que o esperava, saquei o livro da bolsa e iniciei a leitura. Passaram-se 20 minutos. Nada. Pedi um Hurricane. O segundo e notei um SMS. Chego às 19h30. A esta altura, eu já tinha pensado em ir embora sem qualquer aviso. Quando, em toda a minha vida, eu teria feito isso? Nunca! Mas justamente neste dia eu queria fazê-lo. Suportei, entretanto, a massante espera, o lugar, o mau humor ou sei lá o quê havia me dado. Então, ele chega. Daquele jeito, que não é dele. Docemente, educadamente, polidamente. Parecia, até, um homem comum.

Houvesse paciência de pedir ao garçom, eu diria:

Saca Maysa da estante, por favor, e toca "Meu mundo caiu".

Mas eu não tinha saco nem pra isso. Perdi a oportunidade de rir de mim mesma. Quando em toda a minha vida (depois dos 35 anos rsrsrsr), volto a perguntar, eu perderia a oportunidade de rir de mim mesma ou de uma situação tão chata? Nunca! Contudo, deixei passar. Deus, o que havia comigo?

Ele não me encarava nos olhos. Que alívio. Eu não precisaria fazer charme, encantá-lo, fazer o tipo fatal, Yemanjá da outra noite. Ops, sinto uma pista sobre o que está havendo...

Nenhum assunto surgia. Estávamos prestes a bufar de tédio um na cara do outro, quando saquei o lado profissional do fundo da mente e iniciei a falar dos projetos sobre os quais havíamos mencionado sem responsabilidade em alguma conversa anterior. A conversa esquentou, animou-se. Nossos espíritos se arranjaram naquele impulso criativo, que findou com o fim do assunto. E voltamos ao velho, chato e tedioso joguinho da paquera que, puta que pariu, não estava rolando. Pressiona daqui, pressiona dali. Eu já estava prestes a dizer que queria ir embora. Ele talvez também estivesse, quando o impensável aconteceu: ele vomitou grosseiramente sua teoria sobre "sou feliz sozinho, porra!"

Fechei o rosto nas mãos com receio de olhar em volta e ver que o resto do café estava observando aquele homem imenso esbravejando, quase aos gritos, batendo o indicador na mesa e dizendo: Eu sou feliz sozinho e não quero nada mais do que estar sozinho, pois eu me basto, entendeu: EU ME BASTO!

Ele ainda não tinha bebido a quarta dose do Whisky, eu pensava, com o rosto enfiado entre as mãos, os olhos fechados, as pernas cruzadas e meu corpo todo travado com receio daquela explosão. De onde saiu toda aquela raiva? Por que aquela fúria estava vindo, justamente, pra cima de mim, se eu estava mesmo era querendo ir embora e largá-lo lá? Suportei os 10 minutos de fúria, tentando digerir toda aquela teoria inédita sobre como viver sozinho e bem, pois sabia que assim que ele terminasse de falar, ou me deixaria sozinha na mesa, e eu teria que digerir o porquê daquilo, ou me perguntaria algo, e eu teria que responder.

Quem disse, contudo, que eu conseguia pensar em alguma coisa além de: putz, quem sou eu? o que estou fazendo aqui? quem é esse cara? por que estou ouvindo tudo isso? por que não pego minha bolsa e sumo? por que não mando ele tomar naquele lugar? por que estou tendo educação com esse grosso, estúpido que está aos berros na minha frente e me fazendo passar essa vergonha neste café desconhecido e chato com essa música insuportável invadindo meus ouvidos como se eu houvesse dado permissão?

Mas não, fiquei ali, parada. E quando terminou, dito e feito, ele sacou uma cigarrilha, muito cheirosa por sinal, e perguntou: e então, o que você tem a me dizer? (ou coisa parecida).

Fiquei lá, mordendo e lambendo os lábios, sorvendo a água do copo e desejando que toda a Foz do Iguaçu estivesse disponível ali, que todo o ar do mundo fosse só meu. Mas qual nada... havia só meio copo de água e o ar estava irrespirável. Além disso, agora, sim, agora o olhar dele não escapava de cima de mim! Que raiva eu senti daquilo! Por que não havia me olhado assim antes? Encarado-me assim? Agora sim, o danado me invadia toda em busca de respostas, conclusões, perguntas que, sim, egoísta, o ajudassem a entender o que ele próprio havia dito, quando EU, EU não sabia o que pensar do que acabara de ouvir.

Tive ódio dele. Descontei tudo em meus lábios. Já não havia saliva para molhá-los, então os mordia, buscando, será, sangue?

Nada me vinha a mente. Tudo estava turvo. Concatenei lá três ou quatro pontos essenciais que se desdobraram em argumentos secundários e escapei por muito pouco. Salvei o encontro. Ganhei-lhe a confiança. Mas perdi alguma coisa.

Nos despedimos como velhos amigos, carinhosa e respeitosamente. Coisa mais estranha foi ele me chamando de "querida" daquela forma tão insuportavelmente cheia de carinho mas vazia de expectativas.

Entrei no meu carro e senti vontade de agradecer a ele pelo que havia acabado de me dizer. Eu estava impressionada com tudo o que ele conseguia ser, da forma como conseguia viver, coisa absolutamente inédita e impensável para mim. Mas nem pensei em fazê-lo, com receio que ele me questionasse o porquê do agradecimento. E, desta vez, era eu quem não queria deixar a minha zona de conforto e reclusão. Então segui. Certa de que havia ganhado algo muito importante e duradouro e que havia perdido algo insignificante e efêmero. Porém, a sensação da perda me incomodou muito mais que a glória da vitória.

Seria eu humana ou uma aparição?

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