Pés de vidro

"Ela havia desenvolvido um jeito particular de andar para se acomodar à sua condição. Passo, pausa, passo, em vez de passo, passo, passo. Você precisa daquele momento de pausa para se assegurar de que colocou o pé certo. Como os passos de abertura de uma dança. Suas botas eram grossas e acolchoadas, mas uma queda acidental ou tropeço descuidado podia provocar um dano irreparável que acabaria com ela de vez, acreditava. Seria o fim."

A garota dos pés de vidro, Ali Shaw.

Quando dei por mim, minha vida estava em risco e eu não sabia quem eu era. Todas as referências perdidas, todo um planejamento de vida desperdiçado, ou melhor, inútil. E uma série de lembranças, dores, pensamentos confusos que bombardeavam minha razão. Onde eu estava? Que vida eu vivia? Que vida eu viveria a partir dali e que momento era aquele? O início? O fim? O meio? Uma mudança?

Tentei viver as fases do sofrimento. A negação, o entendimento, a resignação, o aprendizado. Tentei chorar e lavar a alma. Tentei sair e esquecer. Tentei dormir e deixar o tempo curar. Tudo foi inútil.

Então me vi diante do dilema de me curar ou desistir. Desistir parecia fácil. E, de certa forma, é bem mais fácil do que se pensa. Mas desistir sem saber a resposta do porquê daquela dor não me bastava.

Saber a resposta para as minhas dúvidas, as angústias e os conflitos é uma característica minha. Isso não havia mudado. Bem, eu ainda reconhecia algo em mim. Sobrava a alternativa de me curar. Isso significava enfrentar o desconhecido, aprofundar-se, mergulhar no que diabos estava me incomodando tanto a ponto de fazer com que a vida perdesse totalmente o seu sentido.

Juntei o restinho de razão que me sobrara. O restinho de Dani. O muito amor dos amigos, a muita confiança que têm em mim, o amor imenso da família, fiz a trouxa e parti para perto do mar.

Se há algo no mundo que possa se assemelhar ao lugar que me esperava, esse lugar era o mar: imenso, profundo, desconhecido.

Não foi simples. Nem fácil. Também não foi extremamente doloroso. No primeiro dia, diante do mar, eu não sabia para onde ir. Ir em frente era tentador demais... Talvez eu fosse fundo demais e não conseguisse voltar. À minha esquerda a praia era conhecida, segura. À direita, desconhecida. Segui à esquerda: passo, pausa, passo. O mar estava calmo. A água morna banhava meus pés; não me batia. De alguma forma, talvez, o mar soubesse que eu não suportaria pancadas naquele momento. Segui: passo, pausa, passo.

Tendo a compreensão do mar, me senti segura para ficar um pouco mais. Foi então que se deu o primeiro mergulho. Foi realmente in-crí-vel! Alguns minutos e deixei para trás quilos e mais quilos de armaduras imprestáveis que não me protegiam de nada.

Quando voltei à tona EU RES-PI-RA-VA! Há meses eu não sabia o que era respirar e agora eu respirava! Nossa! Que vitória!

Todos os dias eu tenho um encontro: eu e o mar. Mergulho após mergulho vou me reencontrando.

Ainda que meus pés sejam de vidro, encontrei um jeito próprio de caminhar: passo, pausa, passo.

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