Neblina

Madrugada. Estrada à frente. Chuva. Neblina. Resquícios de uma noite incomum. Nem sob o efeito psicodélico de uma balada, uma mulher esquece sua própria consciência. O diálogo é constante, duro, reflexivo, mas não pesa. Não torna nada mais difícil. Também não consola. É como olhar-se no espelho ao acordar, ainda com a maquiagem de ontem, o gosto amargo da bebida na boca, os pés doendo. Um retrato cru e real.

Houve um tempo em que se vivia em um mundo ideal, onde o grande amor, o único amor, o eterno amor era real, era possível, era tangível, palpável. Era uma vez... e então este tempo se acabou, ou se escondeu, ou se fechou. Não se sabe. Surgiu algo novo, inesperado, inconstante: incontrolável! A vida sem rumo, sem destino, sem porto seguro, sem mar calmo: tempestade!!!

Coisa boa é a tempestade: revolvendo, enquanto revolta tudo. Chovendo. Trovejando. Ventando. Dispondo o mundo de uma outra forma. Roubando o equilíbrio de todas as coisas, transformando tudo em caos. E é neste caos, diante deste mundo em fúria, que sopra dentro de nós a graça mais divina da vida: a liberdade!

Ah! Como é bom ser livre para ir à direita ou à esquerda. Retornar, voltar, seguir, parar, ficar, correr, falar, calar, doer, deixar de doer e ir-se. Por que não?! Mudar de caminho a qualquer hora. Partir de um porto a qualquer minuto. Mudar de idéia mil vezes por segundo. Diluir-se na inconstância para estar constante no movimento do mundo.

Não há uma só forma de viver. Não há uma única maneira de ser. Pode-se dizer que, apesar de todas as regras, o essencial, o nuclear, o mais importante, o que determina a vida, e o que somos, e o que queremos insere-se em um caso facultativo. Esta é uma das muitas maneiras possíveis de se viver, de seguir em frente. Admitindo a inconstância e a incerteza. Fluindo, sem se deter, sem parar, sem forçar nada, sem tentar deixar tudo sempre muito organizadinho.

O que não se pode admitir, pelo menos não para quem escolhe viver assim, é se deixar levar por ilusões. Ser livre, ter a capacidade de acompanhar o incerto, manter-se coeso no meio da tempestade exige um contato direto e ininterrupto com a realidade. Nem sempre isso se faz sem dor. Nem sempre a dor predomina neste contato. Tudo é incerto. Só se pode (e deve!) ter a certeza, a clareza, da escolha feita. Definido o rumo do próximo segundo, todo o resto pode ser incerto.

Também se pode viver assim. Acredite.

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