TERRITORIALISMO, ACORDOS INÚTEIS E SAÚDE MENTAL

São 5h57. Acordei com a gritaria entre meus vizinhos. Não é algo anormal. Começa ainda de madrugada, quando o sol desponta tímido e ainda divide espaço com a lua. Ki ki ki pra lá, ki ki ki pra cá, sem cerimônia, sem respeito ao sono dos outros, eles começam. As vezes acho que vivo em um cortiço, bem ao estilo de Aluísio Azevedo, em que lavadeiras discutem com engraxates e alfaiates empinam nariz para ambos, em sinal de superioridade.

O meu cortiço fica no bairro de Setúbal, no Recife. Uma área que ainda não foi completamente verticalizada, como Boa Viagem, e que, talvez por isso mesmo, conte com essa população de vizinhos peculiares.

Voltando a hoje. Não acordei com a gritaria. Hoje foi pior. Era briga mesmo. Coisa para o Casos de Família.  Cambacicas, bem-te-vis e rolinhas brigavam no telhado do prédio ao lado, sabe-se lá porquê, enquanto pombos olhavam e comentavam: “Olha bem isso! Que comportamento! Depois nós é que somos aves de segunda classe! Escória da cidade.”

Um beija-flor passou, viu a baixaria, parou, daquele jeito meio TDAH – parando sem parar. Foi, voltou com as amigas que, da mesma forma, pararam sem parar para olhar a confusão e em pouco tempo a passarinhada toda estava metida no meio da discussão.

Não é a primeira vez que isso acontece e também não é algo restrito a Setúbal. Mamãe mora em Boa Viagem e lá as famílias têm o hábito de oferecer refeições em suas varandas para os vizinhos passarinhantes. Frutas, legumes, alpiste, sementes de girassol, pão e néctar paraguaio (aquela água com açúcar, sabe?). Pois bem, os vizinhos chegam, se fartam aqui, petiscam ali e, assim, oferecem aquele minutinho de beleza pra quem está cansado de ver prédio, prédio, prédio.

Acontece que essa convivência não é muito pacífica. Os comedouros e bebedouros estão ali para quem quiser, à vontade, se alimentar. Tem pra todo mundo! E se contar com as árvores frutíferas – mangueiras, goiabeiras, jambeiros etc. – aí é que não falta mesmo. Todavia, há disputa.

Tentou-se estabelecer uma espécie de Tratado de Tordesilhas: à leste da varanda, beija-flor; à oeste, cambacica; nas caixas vazias de ar-condicionado, os pombos. Parecia um acordo confortável. Ilusão. Há tiro, porrada e bomba entre eles. Claramente, não é pela comida, pelo néctar, nem pelo pão. É territorialismo puro. Coisa de recifense, diga-se de passagem.

Nessa coisa de ficar bradando para os quatro cantos do mundo: “Pernambuco, meu país!”, o povo se anima e esquece o restante do país continental que somos. Mas, enfim, voltando aos pássaros, ainda que cientes de que tem pra todo mundo, eles são tipicamente recifenses.

Então, se estabeleceu o Tratado de Madri. Lembrando que estamos falando só da zona sul do Recife, viu? Nessa pegada, fica com a refeição quem chegar primeiro e tomar posse. E aí eu me pergunto: de quem foi essa ideia desastrosa? Tem acordo mais inútil? Isso é o mesmo que dizer: cai dentro.

E a galera cai mesmo. E foi por isso que hoje não deu pra ignorar o ki ki ki. A briga chegou num nível que tinha pombo preto fazendo as honras de pomba da paz. Inacreditável. Gavião, gaivota e urubu sobrevoaram a confusão. Os primeiros só pra conferir se a fofoca era verdade: “estão brigando por migalhas na zona sul! Na zona sul!!!” O último fazendo a função típica de vir bicar o que sobrou, o basculho.

Por fim, minha vizinha se cansou da baixaria e, sem dó, ligou uma mangueira e danou a jogar água no grupo da intriga.

A balbúrdia se desfez. Cada um foi pro seu lado, ainda jogando ofensas daqui e dali, com aquela covardia de quem está muito longe pra brigar, mas ainda quer se fazer de valentão. Aos poucos a urubuzada desistiu e tomou rumo, pois viu que dali não saía mais nada. Os pombos voltaram a bicar qualquer coisa no chão, completamente robotizados neste trabalho automatizado de comer comer comer.

Só que isso, foi só hoje, foi só agora. O fato é que existem grupos insatisfeitos, disputando o mesmo território e de forma cada vez mais agressiva. Não duvido nada de que por esses dias o jornal local vai noticiar esses confrontos e não mais os carros incendiados por gangues rivais.

Eu sei disso porque já fui, diversas vezes, testemunha desses confrontos. E não tenho medo não de dizer que vi. Eu vi. Na varanda da casa da minha mãe, uma senhorinha gentil que todo dia, três vezes ao dia, oferece néctar em lindos tubinhos com flores de plástico coloridas, tem briga.

Eu a visito toda semana, duas vezes. Nos sentamos na varanda para observar os pássaros se deliciando com o néctar. Não são um ou dois. São muitos. Entre as atualizações, fofocas, desabafos e segredinhos, a gente vez por outra para, faz estátua, olha pra cara uma da outra como quem diz: “Olha, olha, o beija-flor! Que gracinha!”

Era assim no início, logo que ela se mudou e começou essa rotina de alimentar pássaros. Hoje, passados três meses, já não é assim. Eles entram pela casa, se metem na conversa... Tem até beija-flor que pousa na rede de proteção, chama o colega, faz estátua e diz: “Olha, olha, as velhinhas! Que gracinha!” E o outro responde: “Será que hoje tem alpiste além dessa água com açúcar cristal?”

Vê o nível que a coisa chegou. Já estão exigindo mudanças no cardápio! Você deve estar pensando que tiro, porrada, bomba e exigências gastronômicas já foi demais né? Mas eu disse que testemunhei briga de gangue. Pois bem. Essa semana, na minha visita rotineira à mamãe, encontrei só um bebedouro na varanda, preso na rede com fita durex. A briga esses dias entre as cambacicas e os beija-flores foi tão violenta, que quebraram tudo! Quebraram o patrimônio deles!

Vê pra isso! Que passarinhada despolitizada! Como é que arrebentam as instituições que estão ali para servi-los? Todo o imposto de canto bonito que eles pagam toda manhã, 365 dias por ano, jogado fora! Eu sei que a população tem o direito de se manifestar, mas, pera lá. Destruir o patrimônio é insano.

A vida anda insana né? Cada vez mais a gente ouve falar em saúde mental. Quem trabalha em escola, então, vive com isso o tempo todo. Essa pandemia, ensino remoto, isolamento social deixou a galera meio loucona. Lá na minha faculdade mesmo, meu amigo, minha amiga, o bagulho tá loucaço. O curso é Psicologia, mas tenta explicar para os alunos que aula não é terapia? Não dá bom, não!

E aí o que começou na aula, termina no grupo do whatsapp, onde você descobre exatamente quem é quem. As pessoas perdem a mão. É como a passarinhada hoje aqui do lado. Afastou um pouco, empluma o peito e dispara um monte de desaforo e grosseria porque já sabe que não dá nada: tá todo mundo no seu canto mesmo.

Isso me fez lembrar das pecinhas que tenho aqui na minha janela. O vidro tem uma película espelhada (estou tentando acreditar que isso reduz mesmo o calor dentro de casa). Bem, não sei se eu tinha que avisar pra alguém sobre isso, nem se adiantaria alguma coisa. O fato é que o bem-te-vi é narcisista. Saiu um raio de luz, o vidro espelhou, lá vem ele: bica, bica, bica o vidro da janela incessantemente.

Minha gente, chega ao cúmulo de eu precisar me levantar, abrir a janela e conversar com ele. Nem me formei ainda e já tenho consultório na janela do meu quarto e paciente me chamando às 5h da madrugada!

Eu não sei se eu sou um sucesso absoluto, o santo graal da psicologia passarinhesca, a etologista do momento, só sei que todo dia me levanto cedo para atender este paciente. E, confesso, apoiar narcisista não é fácil não. 

Tudo isso me faz pensar sobre a vida, a existência, né? Saúde mental não está na boca da ONU à toa. Até deixaram meio de lado a questão do aquecimento global porque é a cabeça das pessoas que está fervendo. Esses dias eu disse para um dos meus pacientes: “Amigo, vamos lá, acorda para o mundo. Bater boca em janela não vai agilizar o seu corre não. Se diversifica, se adapta. O mundo hoje quer pessoas adaptáveis. Vamos trabalhar essas suas habilidades socioemocionais.”

Corro o risco de ele nunca mais aparecer e ainda não pagar as consultas. Mas as vezes a gente precisa ter uma pegada meio gestaltista e dar um choque de real

Comentários

Postagens mais visitadas