O cão

Eu sou um cãozinho dotado de grande inteligência. Inteligência, mesmo, acima da média. Minha vida não se resume a comer, beber, evacuar, dormir, brincar e latir. Eu olho o mundo a minha volta e vejo coisas. Muitas coisas. É como um punhado de purpurina muito fina jogada no ar, e que o vento leva, espalhando por todos os lugares. A purpurina une-se às coisas, a todas as coisas do mundo e também do mundo que não vemos. Mas apenas quando a luz incide sobre ela em um ângulo perfeito é que se pode vê-la. Ela brilha por um átimo de segundo. E volta a brilhar se a luz novamente, perfeita, incide. Num piscar de olhos pode-se ver ou deixar de ver esse brilho.

Assim é o mundo: coisas, coisas, coisas e não-coisas cobertas de purpurina, muito fina, muito difícil de ver. Mas, como eu disse, sou um cãozinho inteligente. Eu vejo coisas e vejo a purpurina. Muitas vezes, contudo, ela não está ao meu alcance e preciso de alguém que me leve até ela. É o meu dono.

O meu dono sabe o quanto sou inteligente. Ele me ensina truques incríveis que fazem com que eu me diferencie dos demais. Isso provoca um tanto de inveja naqueles que, como eu, têm quatro patas, uma língua e um nariz para enxergar o mundo. Também, devo confessar, que os truques que aprendo me distanciam dos meus iguais. Sei de coisas que eles não sabem, compreendo coisas que eles sequer suspeitam que exista. Não sei latir apenas de dor, raiva ou alegria. Eu dialogo.

No meu mundo, no entanto, este diálogo quase não tem sido possível: meu dono, embora me ame, não vê em mim nada mais que um cachorro. Um animal. Os animais, como eu, não dialogam. Vivo, portanto, em um mundo de silêncio. A inteligência não pode se manifestar no silêncio. Se não há um 'outro', se não há alteridade, como haver diálogo e pensamento?

Eu sei truques muito bons. E sei que são truques. Meu dono não sabe que são apenas truques. Ele crê que isso é tudo que posso fazer e, o que é pior, ele crê que isto é o melhor que eu posso ser: um cão ensinado. As vezes, deito sobre minhas patas dianteiras e fico olhando tudo com aquele olhar de 'cachorro abandonado'. É assim que meu dono me vê: com um lindo e manhoso olhar de cão abandonado. A verdade é que estou olhando para mim, para o mundo em que vivo e que não posso compartilhar com ninguém. Eu suspiro, me ajeito sobre as patas, inclino um pouco mais a cabeça, me canso e durmo: o profundo sono da inquietação.

De repente, acordo. É o mundo. São os ruídos do mundo. Tudo começa novamente. Como dói viver entre tanta ignorância. Comer, beber, evacuar, vagar, latir, dormir. Repetir os truques, aprender variações de velhos truques, continuar a ser um cão suficientemente inteligente para receber o aplauso dos homens e suficientemente inteligente para ser desprezado pelos meus.

Eu sou um cão. O mundo está coberto de purpurina. Não tenho força, altura e nem coragem para chegar onde ela está, para absorver o seu brilho, entender o seu significado. Eu sou um cão inteligente. Eu tenho um bom dono. Eu vejo coisas. Eu vejo o mundo. Mas só o nada me pertence. Só o silêncio ouve meus pensamentos. As portas do diálogo não estão abertas para mim.

O que será melhor? Continuar a ser cão? Deixar de ser um ser? Não existir, talvez. Ir para onde todo diálogo se origina e nunca termina.

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