Nove meses de saudade...


Magdal,

Nossa menina vai bem. Você a conhece. Cada dia mais falante, sorridente e travessa. Inteligente demais. Sempre nos emocionando com suas tiradas delicadas e alegres e aquela gargalhada gostosa. Ah, sim! Ainda dando aquelas birras horríveis. Mas, agora, um pouco menos. Está mais carinhosa e, finalmente, entendeu que "a escola é legal". Mas fiz aquilo que eu e você havíamos combinado: troquei-a de escola. Agora, ela está adorando!

Está crescendo tanto! Quem a pega no colo, pensando que é pequena e levinha, logo diz: mas que menina mais "socadinha"! Agora, já não prefere o menu "arroz, feijão e farinha". Está variando... variando demais até! Anda difícil para comer. Há dias em que come sem parar, outros em que não quer nada. Aliás, nada não! Doces ela nunca rejeita! Aquele doce de goiaba que você trouxe do Piauí... ela comeu todo, sozinha! Comia lascas tão grandes do doce que eu tinha medo!

Ela sente muito a sua falta. Não pensávamos que sentiria tanto. Afinal, tão pequena. Será que entende? Entende sim... Entende muito! Todas as noites rezamos para você. Foi a forma que encontramos de mantê-lo mais perto de nós. Fiz, também, uma almofadinha com sua foto para ela. Nela, ela se aconchega e dorme tranquila. Creio que, apesar da saudade, vai crescer forte. Algo nela mudou. Ela é uma menina forte, sabia?

E você, faz tanta falta! Nossas conversas de pais desesperados diante de uma menininha que nos apaixonava e exasperava. Nosso amor mal resolvido. Nossa amizade tão forte, cúmplice, sempre presente, anos e anos a fio.

As muitas músicas e livros que compartilhamos. As pizzas de banana. As idas ao cinema. As caminhadas no Jardim Botânico. As visitas aos amigos mais íntimos. As longas conversas sobre a vida, sobre o tudo, o nada, a matemática, os seus sonhos, os meus sonhos, os nossos sonhos.

Tudo o que compartilhamos permanece, assim como permanecem nossos melhores sentimenos. Fica "O Haver" e muita, muita saudade.

Dani


O Haver

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo:
— Perdoai! — eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia de simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano, ou essa súbita alegria
Ao ouvir na madrugada passos que se perdem sem memória...

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de sua inútil poesia e sua força inútil.

Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa tola capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem de comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo esse desejo de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não têm ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
E transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta essa obstinação em não fugir do labirinto
Na busca desesperada de alguma porta quem sabe inexistente
E essa coragem indizível diante do Grande Medo
E ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer dentro da treva.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem história
Resta essa pobreza intrínseca, esse orgulho, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do próprio reino.

Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento
Esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável
Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços
E esse eterno ressuscitar para ser recrucificado.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, esse fascínio
Pelo momento a vir, quando, emocionada
Ela virá me abrir a porta como uma velha amante
Sem saber que é a minha mais nova namorada.

Vinícius de Moraes

Comentários

  1. Oi Dani,
    é como naquela música do Chico: fica como tatuagem.
    Uma ótima semana para você!

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